Quando fiz dez anos nós nos mudamos para o sítio do meu pai que, na época, ficava distante sete quilômetros da cidade. Um ano depois meu pai comprou uma égua pra nós, eu e meu irmão... Depois de muita insistência nossa, já que meu pai não gosta muito de cavalos! :(
Eu desejava muito muito ter um cavalo, apesar de nunca ter montado e de sentir-me miúda e insegura demais para ter a capacidade de dominar e comandar um animal tão grande como aquele, fato que hoje sei estar intimamente relacionado com minha baixa estima da infância.
Pois bem, a história que envolve o animal comprado pelo meu pai é muito bonita, sensível e triste... Era uma égua castanha, talvez uma raça de cavalo comum, ou seja, sem raça definida devido à mistura e o cruzamento de variadas raças, era baixa e tinha um olhar desconfiado, o que hoje entendo ser um animal com traumas e com tristes experiências com a raça humana.
Sua fama perante as pessoas não era das melhores, ela já havia quebrado o braço de dois meninotes, deveriam ter seus treze anos, no máximo. Era uma égua que havia sido domesticada e montada por moleques, destes que em cidade pequena têm seus próprios animais, crianças com pouca ou nenhuma consciência da relação sensível e bela que pode ser construída com um cavalo.
Até hoje não entendi muito bem o fato do meu pai ter comprado um animal pra nós que tinha esse perfil, pois se ele não gostava e não queria que nos machucássemos, qual a razão em adquirir uma égua que havia derrubado duas crianças? Não sei a resposta...
Ficamos doidos para montar, eu estava extremamente ansiosa e achei que pudesse montar e sair pelas estradas como se não houvesse amanhã. Pura ilusão...
Aqui preciso confidenciar um fato que também nunca compreendi muito bem, mas meu pai nos comprou a égua sem nenhum tipo de arreio ou sela, apenas um cabresto que usávamos para trazê-la perto da casa, dar banho (eu amava dar banho nela e era o que mais fazia!) e até montar.
Meu pai jamais deixou-me montar sozinha e nós andávamos, eu e meu irmão, juntos e montados no pelo do pobre animal... Eu estava sempre na garupa e ainda hoje, quando fecho os olhos lembro-me da égua galopando pelas estradas, para mim era como se ela estivesse voando... Era a melhor coisa da minha vida!
Mas a minha maior vontade era a de montar sozinha, embora jamais tenha desobedecido meus pais; eu pegava a égua e ficava puxando-a pelos quintais do sítio sonhando no dia em que pudesse montar e sair galopando livremente pelas estradas...
E o tempo foi passando, alimentávamos a égua com farelo de trigo, milho e capim triturado... Ela estava cada dia mais gorda e eu ficava muito feliz ao vê-la "roliça" como uma porquinha! Rsrsrsrs Afinal temos a pouca consciência de que para estar saudável é necessário estar gordo!
Eu disse que jamais havia desobedecido meus pais?
Ok! Nunca cheguei a montar desacompanhada, mas em uma tarde amena de outono meu irmão chamou-me para montarmos... Ele havia tido uma ideia brilhante! Já que não tínhamos sela, ele decidiu selar a égua com tapetes e cobertores da minha mãe e prendê-los audaciosamente com dois cintos do meu pai!
Minha mãe disse que aquilo não daria certo!
E não deu...
Minha mãe avisou que não era pra eu ir...
Mas eu fui...
Eu tinha onze anos de idade, no dia seguinte haveria prova de História e eu estava, como poucas vezes na minha vida, desobedecendo uma ordem de meus pais.
Meu irmão disse que seria apenas uma voltinha para testarmos a ideia, depois eu estudaria e tudo ficaria bem... Realmente, foi apenas uma voltinha!
Tentarei descrever o que de fato ocorreu, com o máximo de realidade dos meus sentimentos. Meu irmão "selou" a égua com os apetrechos improvisados e nós montamos dentro do sítio mesmo. Audácia e orgulho juntos não combinam, meu irmão decidiu fazê-la correr e aquele momento ficaria impresso no meu espírito para sempre.
O cavalo tem quatro tipos de andar a conhecer.
O passo, um andamento natural, a quatro tempos marcado pela progressão sucessiva da lateral dos pés.
O trote, andamento simétrico a dois tempos em que um par diagonal de pernas toca o solo ao mesmo tempo.
Cânter, andamento a três tempos onde o cavalo avança com a perna dianteira direita, quando gira para a direita e vice-versa. Também conhecido como meio galope ou galope macio.
E por fim o galope pleno, o mais rápido dos andamentos naturais. É um andamento a quatro tempos e sofre variações de acordo com a velocidade. Há momentos em que todas as patas ficam no ar (lembram quando disse que eu tinha a sensação de que a égua estava voando?!). Um cavalo comum pode atingir até 25 km/h enquanto que um Quarto de Milha pode chegar facilmente aos 88 km/h.
Quando meu irmão decidiu fazer a égua correr um pouco mais o arreio improvisado, obviamente, começou a soltar-se e consequentemente virar, fazendo com que fôssemos lentamente virando junto e ao passo que isto acontecia, a égua assustada ou querendo livrar-se logo do incômodo que é ter um cavaleiro mal colocado em seu lombo e aqui, no caso, eram duas crianças extremamente mal posicionadas sobre o animal, galopava cada vez mais depressa.
A medida que nós íamos virando eu sentia o galopar do animal como se fossem as próprias batidas do meu coração e por um instinto de sobrevivência inerente ao ser humano, agarrei-me cada vez mais forte ao meu irmão, trazendo-o junto de mim em uma queda de um animal praticando o movimento mais rápido que pode atingir.
Do momento em que começamos a cair até a queda em si foram segundos de pânico e silêncio absoluto, em minha memória auditiva está apenas o barulho forte das passadas do animal a confundir-se com meu próprio batimento cardíaco. Algo extremamente estranho ocorreu, tudo em minha volta desapareceu e eu via apenas a paisagem à minha frente virando-se como se passassem quadro a quadro até a nossa queda.
Lamentavelmente nós caímos e com o fato desesperador de querer segurar-me em algo eu trouxe meu irmão comigo até o chão. Na verdade, quem estivesse ali naquele instante iria cair, ou apenas ele, ou apenas eu (o que jamais poderia ocorrer) ou os dois, como ocorreu. Eu cai com os braços em volta do corpo franzino do meu irmão, tendo assim todo o peso e força da queda direcionados para o meu braço direito, lado em que viramos durante a queda...
Dispenso maiores comentários sobre a tarde longa e dolorida que tive! Quebrei o braço em dois lugares, um mês de imobilização com gesso.
A égua só poderia ter um fim, estava à venda!
Até que um dia pela manhã, por volta das seis horas, minha mãe me chamou toda feliz e entusiasmada - "Acorda filha, acorda! Tem um cavalinho com a sua égua..."
Ah meus amigos, eu jamais conseguirei imprimir em qualquer folha ou sobre qualquer estampa o sentimento que invadiu o meu espírito naquele instante! Como assim? De onde veio o cavalinho que estava com a minha égua?
Ele está mamando na égua! Ela deu cria!!!!! - respondeu minha mãe cheia de alegria!
Claro que quando meu pai comprou a égua ninguém sabia que ela estava esperando pela chegada de um lindo potro vermelho fogo das crinas pretas...
Família de pais supersticiosos, todos acharam aquele fato auspicioso e a propriedade do meu pai estava abençoada com aquele ocorrido! A égua não estava mais à venda.
Meu pai criava porcos e se você quer ter porcos, não tenha cavalos no mesmo espaço... A égua matou com as patas dianteiras diversos leitões do meu pai, era uma patada certeira que deixava meu pai irado e encolerizado com o fato de ter a égua junto dos porcos.
O sítio era cortado ao fundo por um rio em toda sua extensão. A solução foi levar a égua e o potro do outro lado do sítio para que ali eles ficassem isolados e ela deixasse de dar prejuízos, como meu pai nos colocou.
E assim foi feito...
Meu irmão cresceu, deixou de se interessar por cavalos e a esqueceu do outro lado do sítio...
Eu tinha doze anos apenas, não sabia montar e tinha tão pouca consciência do que era capaz... Sentia-me extremamente desqualificada para fazer qualquer coisa que pudesse trazer a égua ao convívio novamente e o potro crescia a cada dia, cada vez mais arisco e nervoso.
Um coração selvagem, um corpo franzino e muita falta de discernimento de quem eu era, do que seria capaz de fazer, de como poderia continuar aquela relação entre uma criança e um animal de mais de trezentos quilos... Já que toda a fama de ter caído tinha ficado sobre as minhas costas, uma vez que ficou resolvido que a culpa por termos caído tinha sido minha, já que "derrubei" meu irmão...
Amigos, essa é uma postagem de coração aberto, como um grito de liberdade de algo que ficou preso dentro de mim há anos... Sinto que estou madura o bastante para esclarecer os fatos ocorridos e para expor meus sentimentos, minhas experiências, meus maiores medos e conquistas e embora muitas pessoas critiquem essa prática, tão comum em redes sociais, julgo ser essa postagem um divisor de águas, a libertação e a descoberta de que sou capaz de coisas que jamais imaginei ser, de que posso dividir com quem quiser os meus melhores sentimentos sem que isso torne-se pejorativo ou inconveniente, como muitas pessoas fazem com seus segredos e experiências de vida. Ao contrário do que para muitas pessoas ocorre, a atitude de compartilhar um acontecido traumático e consequentemente a descoberta de muitos sentimentos relacionados a tal fato, é de extremo positivismo para o meu ser.
O tempo foi passando e embora houvesse a vontade viva dentro de mim de ainda poder montar, havia o respeito que eu tinha pelos meus pais e eu, desde a queda que resultou na fratura do meu braço, nunca mais coloquei-a no cabresto. A cada dia que passava ela e o potro ficavam mais ariscos, era difícil de aproximar-se sem que fosse para tratar, ali não havia como banhá-la e inevitavelmente acabei deixando-a de lado também...
Um sentimento de incapacidade toma conta de mim quando me lembro disso, uma mistura de negligência com ignorância, não tenho lágrimas nos olhos e sim dentro do coração...
Um dia a égua foi pular uma valeta e caiu quebrando a pata... Ela morreu! :( :( :(
O potro foi vendido para o menino que nos vendeu a égua.
Acabou o sonho e eu pensei que nunca mais iria poder e nem conseguir montar...
Vinte anos depois surgiu a oportunidade de montar em uma escola de equitação aqui na minha cidade. Como todo mundo sabe, essa é uma prática que requer dinheiro, cheia de glamour e para mim, algumas coisas dispensáveis. As aulas tinham um preço popular e para mim eram perfeitamente acessíveis. Eu fui...
Depois de vinte anos eu montei sozinha, apenas com o professor no chão me dizendo o que fazer. Na segunda aula eu já consegui montar e andar tranquilamente com o cavalo ao trote, porém, na passada entre trote e galope era como se eu voltasse aos meus onze anos.
Eu chorei, chorei por não conseguir deixá-lo galopar, chorei por sentir-me incapaz novamente, chorei de medo, chorei de raiva, chorei de vontade de galopar livremente...
Foi a última vez que montei. As aulas foram suspensas e nas escolas próximas eu infelizmente não tinha condições financeiras de manter-me. O sonho havia acabado mais uma vez e dessa, pensava eu, era definitiva, pois eu jamais teria condições de manter um cavalo em um haras para montar e muito menos de manter-me fazendo aulas de equitação em escolas próximas à mim.
Vinte e quatro anos depois do ocorrido no sítio dos meus pais e quatro anos depois das duas aulas que fiz, meu marido me presenteou com o Xodó.
As imagens que seguem são do exato dia em que eu e Xodó nos vimos pela primeira vez...
Meu marido não tinha conhecimento do amor que tenho por cavalos até que neste dia, quando ele parou o carro na estrada chegando no sítio e desceu pegando o peleiro na carroceria e me entregando: _ Vai ser feliz! - ele disse... Nesse dia meu coração externou todas as lágrimas contidas em vinte quatro anos e aqui, novamente, não há como imprimir em lugar algum o que senti!
As imagens falam... Vejam o meu contentamento e a satisfação do Xodó!!! Parece até que esperávamos um pelo outro.
A primeira vez que montei no Xodó... Depois de anos sonhando com isso, depois de ter pensado que havia desistido...
... Descobri que meu sonho estava adormecido e que Deus, em sua infinita bondade, deixou-me realizar o simples sonho de galopar e gritar, galopar e sorrir, sentir-me verdadeiramente em casa quando estou montada!
E posso dizer que quando Xodó nasceu Deus determinou que um dia ele seria meu e que nós dois, juntos, venceríamos muitos traumas!
Xodó tem pavor que coloquem a mão em suas orelhas, não sabemos o porquê disso, mas inexplicavelmente a única pessoa que pode mexer em suas orelhas sou eu... Ele sabe que pode confiar em mim, assim como confio nele...
Eu viverei eternamente como espírito que sou e jamais me esquecerei da presença e existência do Xodó nessa vida!